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Jailson Marcos, 54 anos, Recife

Na frente de uma simpática casa branca com muro baixo, no início de uma longa rua residencial ao lado da tumultuada Avenida Caxangá, no bairro da Madalena, Jailson Marcos, vestindo camiseta preta, bermuda e uma de suas sandálias, acena para me indicar que aquele é o lugar. Hoje, dois funcionários estão reformando a parte da frente do quintal. Entre cimento e tijolos, entro na casa, que já denuncia que guarda algo especial: vários sapatos estão expostos em estantes na sala, além de objetos de decoração e livros sobre calçados.

 

Jailson é um dos sapateiros mais conhecidos de Pernambuco, com suas criações com design e formas sinuosas. As sandálias com a parte da frente que cobrem o dedo são sua marca registrada. Já calçou nomes como Carlinhos Brown (que recentemente encomendou novos modelos para usar no programa The Voice Brasil) e Elba Ramalho, e também criou modelo para filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus e Boi Neon.

Jailson Marcos - Foto: Marília Gouveia

Do Sertão ao Litoral

Jailson nasceu na cidade de Santana do Matos, no Rio Grande do Norte. Na infância, gostava de ler sobre arte, arquitetura e moda, mas nunca se viu fazendo roupas. Os acessórios eram os que realmente chamavam sua atenção. Um sapato de couro de cobra que comprou, nos anos 1970, está guardado em sua memória até hoje. Cintos com fivelas grandes também faziam parte do seu guarda-roupa. Quando suas três irmãs iam comprar sapatos, o chamavam para escolher junto com elas.

 

Ao final da adolescência, foi para Natal, terminar os estudos. Antes dos 20 anos, já trabalhava como funcionário público e, em 1985, veio para o Recife. As irmãs e os pais depois seguiram os passos e se mudaram para a capital pernambucana. Aqui, foi empregado na parte administrativa de uma multinacional. Seu chefe, na época, chegou a incentivá-lo a cursar Administração mas no dia da prova perdeu a hora e precisou mentir contando que estava estudando. Até que um dia foi demitido.

 

A moda veio, então, como necessidade. Fazer cintos e bolsas era a coisa mais fácil que ele pensou em fazer, e ia vender seus produtos nas repartições públicas. Certo dia, um vizinho argentino o ensinou a fazer um mocassim de camurça, costurado a mão. Bastou isso para que os sapatos virassem seu ofício. Nos anos seguintes ainda chegou a ser sócio de uma empresa de alimentos industriais mas os desenhos de sapatos que tomavam sua agenda não o deixavam esquecer da paixão.

A casa-fábrica

No começo da visita, Jailson me leva para conhecer o ateliê. Depois que passamos por uns três cômodos, sempre cheio de sapatos, a parte de trás se revela como um mundo completamente diferente. A equipe é formada por sete pessoas, mais uma assistente administrativa, que produz de 20 a 25 pares por dia. Todos os modelos saem das mãos de Jailson, que vai construindo as peças livremente, até que consiga enxergá-las em 360 graus. Os artesãos são divididos em modelagem, corte, costura e solados. A pequena fábrica é como um “caos organizado”. Várias peças e pedaços de couro estão espalhadas e o cheiro de cola e barulho das máquinas causa confusão nos menos acostumados como eu. No final do terreno, está o ateliê de Jailson, cheio de papéis e sapatos inacabados.

 

Sentamos em uma sala dentro da casa onde Jailson também recebe alguns clientes. A maioria, hoje, vai para a loja na Galeria Joana D’Arc, no Pina, inaugurada há três anos. Conversamos enquanto ele me conta sobre o começo da carreira e, vez ou outra, somos interrompidos por algum funcionário perguntando sobre um detalhe de algum sapato em produção.

 

Pergunto quanto tempo ele passa no ateliê e descubro que a casa é, também, onde Jailson mora. “Eu brinco que qualquer dia eu vou ser expulso pela minha Pessoa Jurídica. Só me restou um quarto, o resto é empresa. Você não consegue bem separar o que é lazer do que é horário de trabalho. Às vezes eu termino o expediente aqui e vou para meu ateliê e trabalho até uma hora da manhã.”, revela. “Mas eu estou pensando nessa separação. É meio difícil, mas é um projeto para este ano ainda: ter um espaço para mim”, conta Jailson.

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Afirmação, transformação e renascimento

Ele se define como “artesão, sapateiro e designer”, muito pela influência de sua mãe, que bordava, pintava e costurava. Jailson aproveita a deixa para me mostrar alguns desenhos que a mãe coloriu, cheio de sombras e cores fortes. Orgulhoso, ele conta que montou uma pequena exposição dos quadros da matriarca em uma reunião familiar. “Essa semana, eu tava vendo isso aqui e pensando em uma coleção de verão. Ela é do Sertão, né? E as cores são como se fossem as flores. Quando chove e floresce nesse chão rachado, começam a brotar umas flores lindas. Já pesquisei. Inclusive, fiz um tecido que é inspirado nisso, as ‘flores do sertão’. E aí eu faria uma homenagem à ela com esses quadros, na loja”, começa a falar animado. Ele então vai buscar o tecido para me mostrar, genuinamente interessado na minha opinião.

 

O tecido à primeira vista parece apenas um fundo marrom com pequenas flores espalhadas. Depois, percebo que o fundo marrom é, na verdade, um chão rachado de seca. É um contraste impactante. Ele tira de uma sacola flores feitas em couro, que foram a inspiração para as florzinhas que estampam o tecido. O nascimento dessas flores é ainda mais contrastante.

 

“Ano passado, eu passei por um período de depressão. Sabe quando você não gosta de nada, não quer nada, tudo tá feio? Eu passei por esse momento e foi ‘brabo’. Algumas coisas aconteceram, depois tentaram assaltar aqui, foi um momento muito difícil”. Enquanto fala, percebo o quão aberto e generoso o sapateiro é. “Eu não conseguia ir nem no meu ateliê para criar. E, as vezes que eu fui, fiz isso [as flores em couro]. É isso que eu acho mais bonito de tudo: no pior momento de sua vida, você consegue criar flores”, conta.

Depois, ele começa a me mostrar animado outros projetos de criações e inspirações: bolsas em palha que comprou no Rio Grande do Norte, trançados em couro, uso de retalhos e reaproveitamento de materiais. E novamente pede minha opinião sobre as peças, se eu gostei ou o que achei. A conversa volta para o sertão, quando ele fala que voltou à cidade natal após muitos anos e que lembra até hoje do cheiro do leite da vaca no sítio da família.

 

A influência de tudo isso se reflete em suas criações. “... E me fortalece também. Eu estou passando por uma transformação. Depois de tudo, depois da depressão, abri uma loja no Rio de Janeiro. Como é que pode? Claro que isso partiu de mim, né?”. A pergunta e a resposta já são dele. “Eu estou em um momento que caiu a ficha que eu sou uma marca, que meu trabalho virou um objeto de desejo, que eu sou um criador. Que eu sou foda. Eu faço uma coisa bacana, as pessoas gostam, pagam o preço que é cobrado. Eu estou em Ipanema, melhor endereço de moda que se pode ter. Isso tudo me deixa dizer: ‘Porra, tu é foda, Jailson. Vai lá, siga em frente’”.

 

E quando você percebeu que era foda? “Agora, de janeiro pra cá! Claro, na minha vida inteira eu tive persistência, sempre acreditei no que eu fazia. Minha família me apoiava, mas eles não tinham a certeza que eu tinha. Tanto que minha irmã me inscrevia em concursos públicos. O primeiro momento de certeza foi em 1996, quando eu cheguei nessa casa. Hoje ela é minha, comprada com o dinheiro do meu trabalho. Isso dá o maior orgulho, né? E agora chegou em um patamar de dizer que eu já construí e criei uma marca, um produto. E agora eu tenho que crescer também, sabe? Assumir uma outra postura. A empresa vai ter que pagar meu espaço, porque é o mínimo que eu exijo daqui. Mesmo com as dificuldades do país, estou pensando em crescimento. Eu estou muito a fim de fazer, acontecer, crescer e gerar empregos”, completa ele.

 

Pouco mais de uma hora depois de entrar na casinha branca, o sol já está com cara de “fim de tarde”. Gabriela, a assistente, separa pares de sapatos já prontos e embalados para enviar para a loja do Pina. Agradeço e me despeço de Jailson com um sorriso e acreditando mais ainda no poder de se achar foda.

© 2017 - Made in Pernambuco por Marília Gouveia

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